Mulher Nua


Procuro um adjetivo para cobrir o teu corpo,
belo como o lençol da madrugada,
e lento como o teu abrir de pálpebras
no instante de acordar.
Vou buscá-lo num armário de sinônimos,
por entre as palavras redondas do amor.
Toco os teus lábios com as suas sílabas,
sentindo a branca umidade da noite
no leve murmúrio em que pousam os meus olhos.
E vou descobrindo
a luz das palavras que tiro de cima de ti,
Para que apenas te cubra
o adjetivo que te veste,
nua,
nos braços que te procuram.

Infância roubada


Onde estão nossos meninos?
Onde está a inocência?
O que fizeram com as nossas crianças?
Transformaram em pequenos robôs,
comandados pelo consumismo?

Quem brinca de cabra-cega?
Pula corda ou amarelinha?
Alguém sabe jogar pião?
Bolas de gude?
Brincar de casinha?

Para onde foi toda a pureza?
Aquele ar angelical?
O sorriso de menina...
O laço de fita nos cabelos
E os sapatos de boneca?

Quem são estas crianças?
Que matam e roubam,
se vendem e se prostituem?
E cheiram crack nas esquinas,
na tentativa de sonhar.

Será que sonham com a infância
Com o abraço da mãe
Com uma casa feliz
Será que sonham?

Onde estão nossas crianças?
Quem roubou nossa infância?
Pra onde foi a alegria?
Quem plantou tanta tristeza
Neste mundo de meu Deus...

(Elís Cândido/julho de 2010)

Paisagem cinzenta


O dia hoje amanheceu cinzento. E eu também.
Parece que tenho alguma conexão, algum tipo de ligação com a natureza, pois sempre que o dia está cinzento, eu também estou.
O céu está sombrio e as nuvens não parecem de algodão. Parecem de ferro, cinzas, pesadas, como enormes muralhas que teimam em impedir a passagem da luz do sol.
Até os passarinhos estão com preguiça de cantar. Quando cantam, parecem murmúrios, pequenos lamentos, canções de dor e de ausências.
Eu não gosto dos dias cinzentos.
Tenho medo destes ventos, que sopram coisas aos meus ouvidos. Ventos são como vozes sussurrantes, que tentar invadir as nossas almas, nossos ouvidos, nossas casas.
Fecho tudo nos dias de vento: minha casa e minha alma.
Minha casa é meu reino e minha fortaleza. Lá me sinto segura.
Aqui, do lado de fora, fico como um passarinho. Pequena. Frágil. E o vento teima em me levar para caminhos que eu não quero ir.
Seguir em frente é difícil e me sinto cansada.
Eu não gosto dos dias cinzentos.
Queria voltar a ver o sol. Fechar meus olhos e sentir o seu abraço quente que me protege e aconchega.
Tomara logo acabar este dia. Quero voltar para o meu ninho. Quero dormir e acordar ensolarada!
Eu não gosto dos dias cinzentos...

Canção da estrela murmurante




Nós nos amaremos docemente,
Nesta luz, neste encanto, neste medo:
Nós nos amaremos livremente
No dia marcado pelos deuses.

Nós nos amaremos com verdade
Porque estas almas já se conheciam:
nós nos amaremos para sempre
Além da concreta realidade.

Nós nos amaremos lindamente,
nós nos amaremos como poucos.
No teu tempo.


(Lya Luft)

A chuva de ontem


Ontem à noite choveu. Fazia tempo que não chovia... O ar estava seco e o vento sufocava.
Mas, ontem à noite, finalmente, choveu. Foi uma chuva mansa, que caiu em paz e sem fazer estragos.
As palmeiras da minha rua avisaram que a chuva viria. Elas balançaram nervosas, com suas folhas estalando no vento.
Da janela do quarto pude ver as nuvens escorregando agitadas pelo céu e os clarões amarelados dos relâmpagos.
Não tive medo. Não tenho medo de chuva. Tenho medo do vento! Ele sim me assusta.
Choveu a noite inteira. As folhas da minha velha goiabeira, já meio cansadas de tanta estiagem, receberam felizes aquelas gotas de chuva.
Pela minha janela eu pude sentir o cheiro bom da terra molhada e da natureza agradecida.
Meu filho, medroso, dormia ao meu lado, agarrado em minha mão.
E a chuva caía lá fora...
Não sei por quanto tempo fiquei ali, apenas olhando o sono daquele pequeno homenzinho e ouvindo as gotas de chuva cairem... Adormeci em paz!
Acordei num dia de céu limpo, de natureza de alma lavada e de maritacas fofoqueiras gritando pelo ar.
Nas minhas orações de toda manhã, pude pensar como Deus é bom, a vida é bela e infeliz é aquele que passou indiferente por esta noite de chuva!