Responsabilidade X Competência

Tenho observado ao meu redor, principalmente dentro do serviço público, que é onde atuo, as pessoas assumindo responsabilidades para as quais não estão preparadas. 
Uma das maneiras mais comuns de se chegar a um cargo mais alto, dentro do meio público, é através da política, ou da politicagem, em alguns casos. Normalmente, o que vemos nas administrações são prefeitos e governadores que se cercam de pessoas "da sua confiança", como aliás, a nomenclatura dos cargos já sugere: são cargos de confiança. Então, o que acontece, na maioria das vezes, é que são colocadas em papéis essencialmente técnicos pessoas sem o menor preparo, sem a menor noção daquilo o que as espera. São Secretários, Assessores, Diretores, Chefes de Setores, que simplesmente desconhecem os meandros do serviço público. E aí, vimos de tudo: são professoras como secretárias de saúde, administradores como secretários de educação, pedagogos como secretários de obras e saneamento... e por aí a coisa vai. De mal a pior, mas vai.
Não seria muito mais acertado se, ao sermos convidados para exercer alguma atividade para a qual não temos competência, simplesmente fôssemos sinceros e diséssemos: Infelizmente não vou poder aceitar o seu convite, pois não me sinto preparado para o cargo...? Ou então, pelo menos, termos como assessores diretos ou parte da equipe de trabalho, pessoas qualificadas, técnicos, aptos a nos orientar e a nos conduzir corretamente para o sucesso e crescimento da cidade?
Tive a oportunidade de vivenciar uma situação destas. Em um determinado momento da minha vida, fui assessora de uma excelente profissional. Uma mulher experiente, formada dentro da área onde atuávamos, com grande entendimento das suas funções junto à Secretaria da qual era gestora. Tenho certeza de, assim como ela, ter sido ótima profissional. Fiz o meu trabalho sempre com dedicação e esmero. Conhecia todos os Programas e Projetos da Secretaria, sabia da capacidade de cada funcionário, antecipava as necessidades da equipe. Éramos um time completo. Com a saída da nossa chefe (para um trabalho junto ao Governo do Estado) fui indicada para assumir o seu lugar. Nada demais! Afinal, eu já estava por trás de cada ação, de cada atividade, já era responsável pelas prestações de contas... Enganou-se quem pensou assim... Havia muita coisa que eu sabia, mas havia outras tantas para as quais eu não estava preparada. E chefiar era uma delas. Eu não tinha, ou melhor, não tenho, perfil para comandar uma equipe. Nem mesmo uma equipe que eu já conhecia bem. Acho até, que neste caso, ser íntima deles foi um fator dificultante para mim. Tenho tendência a ser centralizadora demais. Delegar tarefas me é difícil. E além disto, me envolvo com os problemas pessoais da equipe, sou condescendente e isto tira um pouco do pulso forte que se faz necessário em cargos de comando... Enfim... Sou melhor como executora ou mesmo organizadora do que como chefe.
Esta relação entre responsabilidade e competência pode definir o sucesso ou o fracasso de uma administração, de um governo e por conseqüência, de toda uma cidade, estado, nação. É uma pena percebermos que a vaidade ofusca o senso crítico e faz com que as pessoas se vejam sempre como "o melhor naquilo o que faço".
No final das contas, quem acaba pagando a conta dos atrapalhos políticos somos nós, que nada temos a ver com estas tristes e desacertadas escolhas!

(Elís Cândido/maio de 2011)

Abismos





















Subi até onde pude.
E então parei.
O ar entrava rasgando meus pulmões
E o vento me arrancava a pele.
Eu estava lá!
No lugar mais alto
onde se possa chegar.
No topo da colina
Lugar que todos desejam estar.
Eu estava lá!
Do alto, podia ver a cidade
bem pequena
aos meus pés.
O mundo aos meus pés!
Eu reinava.
Soberana.
Absoluta.
No topo do mundo
E de tudo.
Então sorri.
Sorri sozinha.
Não havia ninguém ao meu lado.
Ninguém mais me acompanhava
A não ser eu mesma
E as aves de rapina
à espreita do meu fracasso.
Mau agouro...
Fechei meus olhos
e desfrutei o prazer insano do poder.
Um vazio me tomou a alma
e percebi que não havia mais caminhos a trilhar.
Não havia mais para onde ir...
O topo é o limite.
O fim.
O passo a frente era o abismo.
Olhei para baixo e tremi....
Entendi que para prosseguir,
deveria recuar.
Refazer o caminho.
Voltar às origens.
Inventar outros objetivos...
Voltar a sonhar.
Decido e desço.
Na caminhada vejo outros,
como eu.
Retornando a vida...
Mais a frente, vemos outros,
corpos desfeitos daqueles
que não conseguiram parar.
Filhos da ganância!
Tenho pena deles.

(Elís Cândido/maio de 2011)

Entardecer

Imagem retirada de olhares.com
Entardeceu...
As nuvens correm apressadas pelo céu
E a passarada disputa um galho na árvore mais alta
Andorinhas ruidosas festejam o final de mais um dia
E as palmeiras balançam suas folhas de alegria


Entardeceu...
Azuis e rosas deixam o infinito colorido
O sol desce com preguiça no horizonte
Insetos pequeninos saem de suas tocas
E farejam uma noite de aventuras


Entardeceu...
Lobos e corujas espreitam
Aguardando que o céu se faça breu
Para fugir das tocas e da agonia
Para saciar a fome de todo um dia


Entardeceu...
E aqui sentada eu observo
O movimento ao meu redor
Espectadora de um cenário
Que já amo e sei de cor.


(Elís Cândido/maio de 2011)

Incoerência














Logo, logo, não tão cedo
As contradições se encontrarão
E nessa separação momentânea
Seremos um para o outro
O que sempre fomos
Eternos desconhecidos

(Fabiano Freitas, publicado no Recanto das Letras em 16/03/2011)

Catarse




















As casas dormem ainda
ensaiando um silêncio de morte improvisada.
Nas janelas fechadas
oculta-se um rumor de luzes estranguladas.
O fogo adormecido da quimera
envelhece sob um céu sem luar
junto à rebentação das sombras
onde decifro a solidão fria do inverno
no crepitar da memória incandescente.

Personagem de encruzilhada, busco
um elo que faça ainda sentido
com qualquer coisa conhecida,
enquanto assisto ao desgaste lento das horas
a cavarem um fosso de incertezas
no parapeito arruinado da esperança.
Respiro todos os segredos da escuridão
no mármore arruinado onde repousa
um silêncio de asas mortas
e o gemer surdo do sono adiado.

Ao fundo do corredor
no átrio vago da demora
range a porta da alvorada
a abrir-se para a claridade inesperada do dia.


(postado por Runa, no blog Seguindo o Escoar do Tempo)

Um pouco de cor e de beleza...


Aquarela Animada, 1923 - Wassily Kandinsky


Para Elas


Maternidade- Pablo Picasso





















amor que se dedica
amor que não se explica
até quando se vai
parece que ainda fica
olhando você sair
sabendo que vai cair
deixar que saia
deixar que caia

por mais que vá sofrer
é o jeito de aprender
e o teu caminho
só você vai percorrer
se você vence, eu venço
se você perde, eu perco
e nada posso fazer
só deixar você viver

enchemos a vida
de filhos
que nos enchem a vida
um me enche de lembranças
que me enchem
de lágrimas
outro me enche de alegrias
que enchem minhas noites
de dias
outro me enche de esperanças
e receios
enquanto me incham
os seios

amor que se dedica
amor que não se explica
até quando se vai
parece que ainda fica
olhando você sair
sabendo que vai cair
deixar que saia
deixar que caia

por mais que vá sofrer
é o jeito de aprender
e o teu caminho
só você vai percorrer
se você vence, eu venço
se você perde, eu perco
e nada posso fazer
só deixar você viver

só olhar você sofrer
só olhar você aprender
só olhar você crescer
só olhar você amar
só olhar você...


Autoras Alzira Espíndola e Alice Ruiz

Moça bonita


Monet





















Moça bonita
com um laço de fita
e cabelos ao vento
a lhe enfeitar

Sombrinha de renda
girando suave
nas mãos tão finas
que sonho em tocar

Vestido de seda
com flores do campo
e preguinhas míúdas
na saia a brincar

Seus pés - adivinho
são tão pequeninos
feito bailarina
a se equilibrar

Moça bonita
dos cabelos ao vento...

No meu pensamento
e em todo o meu ser
és o meu tormento,
meu doce lamento,
meu coração a bater.

(Elís Cândido/maio de 2011)



Domingos















Dia de preguiça.
Acordar bem tarde
e tomar café na cama.
Passar o dia de pijama...

Dia de andar à toa.
Almoçar fora
visitar os amigos,
caminhar pelo parque.

Dia de alegria.
De jogar bola com a molecada,
comer brigadeiro de "colherada"
e nem ligar para a balança...

Dia de voltar a ser criança!

Soltar pipa pelos morros
Tomar banho de mangueira
Jogar bola de gude
Rodar pião

Domingos são assim...
Dia de fazer tudo
de fazer nada ou
de não fazer.

Você é quem escolhe
Você é quem decide
Você é o seu patrão...
Domingo é o seu dia!

(Elís Cândido/maio de 2011)

Terra!

















Aquarela divina
Pintada em três dias
Com cores e formas
De fazer delirar!

Sinfônica afinada
com o canto da passarada
e o pio da coruja
suspirando ao luar.

Engenhoca perfeita
numa cadeia de laços,
ligções e compassos
onde cada um tem função.

Escrita simplória
com um tal poetar
que o maior dos poetas
nunca irá alcançar.

Terra!!
Museu de imagens, de sons e de cores
texturas e sabores
de portas abertas
a quem queira entrar.

Museu por onde muitos passam e nem se vêem passar...

Sombras



















Quem é você?
Que me ronda
Me assombra
Me assusta
E me consome.

Quem é você?
A me espreitar
Sempre tão perto
Passo certo
No meu calcanhar

Quem pode ser?
Meu algoz, meu açoite
Feito sombra
Na luz do dia
e na escuridão da noite.

O que você quer?
Me vampirizar
Sugar o meu sangue
Minha vitalidade
Entrar no meu ser?

O que vou fazer?
Me segues, é certo...
Te sinto tão perto
Que penso em morrer.

O que é você?
Que tanto me aflige
Corrói minha alma
Me faz um insone
Na noite a vagar.

Não há mais saída!
Estou possuída!
Me atiro no abismo
e me deixo levar...

Um pensamento me assalta
neste instante fatal:
Se morro, quem morre?
Eu ou ele, afinal?

(Elís Cândido/maio de 2011)

Lembranças

as
imagem do Google
Hoje senti saudades
dos meus tempos de criança.
Das noites enluaradas,
dos gritos e gargalhadas,
num pique-esconde sem fim.

Lembrei-me das frutas roubadas
nos quintais dos vizinhos,
nos terrenos baldios.
Que tentação!
Que delícia!!

Amoras e goiabas,
jabuticabas e mangas,
araçás e pitangas...
Chupar cana ao entardecer
e fazer pipi na cama!

Era tão boa esta vida criança
de sorrisos e de esperanças,
sem preocupações
e sem medos.

Lembrei-me da velha lancheira,
que eu chamava "merendeira",
com alguma coisa gostosa
para a hora do recreio.

A velha sainha azul de preguinhas,
o "Konga" e a camisa branca
que minha mãe teimava em alvejar
e eu em encardir.

As boas Festas dos Padroeiros,
quando o largo da igreja lotava
e a gente dividia uma única maçã do amor...
Lá tinha leilão, bingos e danças
e as missas, repletas de gente.

Minha boa infância!!
De criança pobre.
De mãe costureira e pai aposentado.
De uma família simples e tão feliz!

Piões, petecas de penas de galinha,
amarelinhas riscadas no chão,
bonecas de sabugo de milho,
revistinhas de colorir com água...

Estas lembranças me aquecem o coração
e me fazem dar valor ao que tenho hoje.
Colho os frutos do esforços dos meus pais,
que me criaram, me protegeram,
me educaram e me fizeram o que eu sou.

Sou esta criança crescida,
sem papas na língua e sem limites,
com um coração cheio de amor
e de lembranças, destes tempos tão felizes!

Que bela infância eu tive!

(Elís Cândido/maio de 2011)

Um pouco de cor e de beleza...

O Mamoeiro, de Tarsila do Amaral, 1925
Imagem retirada do blogdatarsiladoamaral.blogspot.com

Mandalas

Imagem retirada de www.light-weaver.com

Sempre fui fascinada pela beleza das mandalas. Elas me encantam desde os tempos de escola, quando tive a oportunidade de ver uma mandala nas aulas de Artes. Suas cores e padrões sempre muito fortes e marcantes originam peças únicas, ricas em detalhes. 
Lendo um pouco sobre o assunto, pude aprender que as mandalas remotam a tempos antigos, tendo sido muito usadas pelos monges tibetanos e nos calendários maias.
A palavra Mandala é originada no Sânscrito e significa "centro", "círculo mágico", "universo". Em uma mandala, todas as formas que ela origina são iniciadas em um círculo, daí a sensação que temos de sermos "puxados" ou "compelidos" por uma mandala, quando a observamos atentamente.
As mandalas podem ser utilizadas para fins terapêuticos, de meditação e de culto (religiosas), além de serem amplamente aplicadas na decoração de interiores.
Existem muitos sites que exploram mais a fundo o assunto, e que, certamente levarão o leitor a uma viagem rica e interessante no universo das mandalas.
Quem quiser saber mais sobre as mandalas, ou até mesmo comprar uma, pode visitar o site http://www.mandalaarteetransformacao.com.
Mas os que preferirem uma viagem psicodélica com estas figuras, basta acessar o endereço: http://www.light-weaver.com. Neste site você poderá controlar os movimentos das mandalas. É fantástico!!

Frases e Pensamentos...


"Uma boa leitura dispensa com vantagem a companhia de pessoas frívolas."
(Marquês de Maricá)

O Anjo Caído



Era uma vez um anjo. Um belo anjo chamado Mihael. Ele era um anjo de Terceira Hierarquia, aqueles que são designados pelo Criador para ficar bem próximos à humanidade. À cada anjo, é dada a responsabilidade de zelar e orientar um pupilo, um protegido. Para aqueles que duvidam da existência dos anjos, basta ler o Livro Êxodo, da Bíblia Sagrada: "Eis que envio um Anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. Respeita a sua presença e observa a sua voz, e não lhe sejas rebelde, porque não perdoará a vossa transgressão, pois nele está o Meu Nome. Mas se escutares fielmente a sua voz e fizeres o que te disser, então serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários". (Ex 23,20-22)
Então, era uma vez um anjo, chamado Mihael. Teve como incumbência divina, acompanhar os passos de Luiza, desde o seu primeiro sopro de vida. E assim o fez. Esteve ao seu lado todos os dias. A cada passo ele a orientava. A cada tombo ele a reerguia. A cada noite ele velava o seu sono. E foram assim todos os dias da vida de Luiza. Sem que ela sequer se apercebesse.
A vida poderia ter seguido seu rumo tranquila, não fosse um acontecimento inesperado: Mihael se encantou por Luiza.
Aquela jovem doce e tão desprotegida. Ao mesmo tempo tão bela e voluptuosa tornou-se  dor e martírio para ele.
Ele a seguia por todos os lugares. Ouvia cada palavra. Adivinhava cada pensamento. Conhecia cada sonho e cada desejo, mesmo os mais escondidos, encravados no fundo da alma de Luiza...
E ele, a cada dia, mais queria ser seu dono. Ser seu senhor e soberano.
Luiza já não conseguia ter amigos. Não saia. Queria apenas ficar só. Só, na companhia de Mihael. Ela não sabia, mas quando ficava sozinha ele podia se aproximar mais dela. Às vezes, ele achava que ela podia ouví-lo. Perceber sua presença...
Muitas foram as vezes que ela sentia um arrepio estranho percorrendo seu corpo, suas veias, desencontrando seus pensamentos...
Ele cada vez a amava mais. Ela cada vez amava mais a solidão...
Um dia, um querubim chamou Mihael aos céus, preocupado com seu desempenho.
Ele foi advertido. Orientado. Ameaçado. Por fim, foi afastado.
Mihael já não podia mais aproximar-se de Luiza. Em seu lugar agora, outro anjo zelava por ela.
Luiza, repentinamente sentiu-se renovada de energias e de felicidade! Queria sair, passear, ver seus amigos. Sentia-se bela como nunca. Emanava vitalidade!
E Mihael, transformava-se a cada dia numa figura tristonha. Sua luz se consumia pouco a pouco. Suas asas perdiam a força e voar era um enorme sacrifício.
Deus, misericordioso e sábio, tentou dar a Mihael uma nova ocupação. Chamou seu querubim e ordenou que a ele fosse oferecida um segunda chance. Mas Mihael não conseguia preencher a sua alma anjelical com o amor necessário para desempenhar  o seu papel.
Então ele abriu as portas do céu e fugiu.
Naquele momento, Mihael queria apenas uma coisa: rever Luiza!
Desacatando as ordens supremas, ele se viu num vôo rasante em direção ao local que ele melhor conhecia no mundo. O coração de Luiza.
Mas, pobre anjo! Ao chegar lá, encontrou seu pequeno coração já repleto de amores. Batendo descompassado pelo ritmo louco da paixão! Sim. Luiza amava...
Tormento e dores tomaram conta de Mihael, numa fúria que ele até então desconhecia.
Ventos fortes entraram pelas janelas da casa de Luiza, repentinamente. Os cachorros latiam agitados. O céu vestiu-se de negro.
Deus sabia. Ele sempre sabe.
Mihael era agora um anjo banido. Um anjo caído. Um anjo que já não tinha para onde ir.
Ele traiu a confiança divina.
Traiu a confiança de Luiza.
Traiu a si mesmo quando se deixou apaixonar.
Pobre anjo caído!
Mihael agora chora. E a natureza chora gotas de uma chuva estranha, sem razão de ser. Ela chora com ele. Chora por ele.
Vagando pelo mundo, sem ser notado por ninguém, pois era anjo, Mihael sentia-se miserável. Ninguém o via. Ninguém o ouvia. Niguém sabia da sua existência ou da sua dor. Ninguém.
Vagou assim errante por um tempo que nós, humanos, não saberíamos contar. O tempo de Deus e dos anjos não é como o nosso.
E ele vagou. E vagou.
Viu o mundo mudando ao seu redor. Pessoas nascendo e pessoas morrendo.
Afeiçoou-se a um cão. Para quem não sabe, os cães podem ver e se comunicar com os anjos...
Seu sopro de felicidade por pouco tempo durou, já que os anos de vida do cão, comparados a toda a eternidade de Mihael, eram poucos.
Um dia, então, ele decidiu ir ao inferno.
Talvez lá fosse sua morada ideal. Sim. Quem poderia saber?
Decidido como só um anjo sabe ser, caminhou direto para as profundezas da terra. Passou por rios de sangue. Pelo vale da morte e das almas perdidas. Pela zona dos gritos e dos medos. Pelos desertos silenciosos daqueles que se perderam para sempre... E chegou ao inferno.
O Diabo, que não é de negar inquilinos, logo sentiu-se animado por tão honrada hospedagem. E tratou de aceitar o novo residente.
Mihael andava e sentia seus pés doerem. No inferno não é possível voar. O ar repele as pessoas e o peso das suas culpas as fazem pesadas demais. Então Mihael tinha que andar.
E ele andava. Ficar parado era pior. Os gritos e gemidos. Os risos e algazarras. Os sons do inferno pareciam trombetas malditas que atormentavam sua pobre alma.
Muitos foram seus dias naquele lugar. Uma eternidade inteira...
Um dia, Mihael encontrou uma alma perdida que ainda clamava por Deus.
- Deus? Você está no inferno e ainda chama por Deus? - disse Mihael.
- Sim. Cometi muitos erros. Matei, roubei, trai, tirei proveito dos mais fracos, torturei... Mas tenho fé que ainda possa haver salvação para minha alma. Rezo para Deus todos as noites (pois no inferno não há dias, apenas noites) e sei que Ele virá em minha direção!
Aquelas palavras tocaram na alma confusa de Mihael. Ele passou a falar com as outras almas do inferno e descobriu que muitas ainda queriam a salvação. Ainda acreditavam em Deus.
E ele começou a falar das maravilhas que Deus proporcionava àqueles que desfrutavam do seu amor. Falou do seu amor por Deus. Lembrou do seu amor por Luiza. Lembrou-se do quanto a amava e compreendeu o amor de Deus por seus filhos. Um amor enorme e incondicional! Lembrou da sua vida angelical e de tudo o que havia de belo depois dos Portões do Paraíso.
E as almas perdidas cada vez mais vinham ouvir o anjo que falava de Deus.
E o Diabo virou bicho!
Ele chamou os seus asseclas e ordenou que eles expulsassem Mihael. Que eles o levassem o mais longe possível do inferno. Que eles o levassem aos Portões Sagrados dos Céus!
E assim foi feito.
Pobre Mihael. Anjo caído.
Banido do céu.
Inexistente na Terra.
Expulso do inferno.
Os demônios o deixaram lá, jogado nas Portas Sagradas do Paraíso.
São Pedro, ao vê-lo, veio correndo em seu socorro, oferecendo-lhe conforto e carinho.
E o céu se fez festa! As trombetas divinas tocaram por sete dias e sete noites.
Um anjo perdido havia voltado!
Mas haveria de chegar a hora de Mihael se encontrar com Deus!
E esta hora chegou.
Na presença Dele, nada havia que se falar. Afinal, Deus é onipotente e onipresente. Ele tudo tudo sabe e tudo vê.
E Ele viu as andanças de seus filho.
- Eu estava ao teu lado, Mihael, durante todos os teus dias de dor e sofrimento! - disse-lhe Deus.
- Eu era o cão que te acalentou a solidão e que te fez companhia na Terra. Tentei fazer você se lembrar do Meu amor e fidelidade, mas você não Me enxergou.
- Eu estava ao teu lado no inferno! Era Eu aquela alma perdida que clamava por redenção. Eu tentei te fazer recordar que o Teu Deus é misericordioso e que sabe perdoar aos que se arrependem verdadeiramente dos seus erros, Mesmo que estejam pelas porta do inferno.
- Mas você não se lembrou! A unica coisa que fez você se lembrar de Mim, foi o seu amor por Luiza. Sua perdição e sua redenção ! Por ela você veio até a Mim. Por ela você compreendeu que aquele que ama como Eu os amo, sacrifica a sua felicidade em nome deste amor.
E Mihael compreendeu este amor imenso. E ficou grato.
Ele aceitou sua condição angelical e a responsabilidade de retornar à Terra para cuidar de uma nova alma, que acabara de chegar ao mundo.
E Mihael veio ser o anjo guardião de Dimas, o filho de Luiza.
Porque assim Deus ordenou. Porque Ele assim quis. Por amor e devoção. Todos os dias daquela pequena vida.
Sempre.

(Elís Cândido/maio de 2011)

A Espera

Eu te esperei
Por toda a manhã
E por toda a tarde
Durante todo o dia
Eu te esperei...

Coloquei o meu melhor vestido,
Uma flor no meu cabelo
E o teu perfume preferido.
Então eu te esperei.

Pela janela, vi as nuvens
que brincavam pelo céu
E os casais apaixonados
Caminhando, abraçados...

Eu sorria.

Já podia sentir a tua presença
Dentro de mim
Te adivinhava
Te possuía

Te esperava.

O relógio, com seus ponteiros apressados
Me avisava do passar do tempo
Mas meu coração - desavisado!
Teimava em esperar

Um pouco mais...

Não percebi murchar a flor do meu cabelo
Nem o evaporar do meu perfume
Não me vi envelhecer
Enquanto te esperava.

Apenas, um dia, fechei a janela
e não mais olhei o céu
Ou as nuvens
Os casais enamorados.

Fechei meus olhos...

Deitada em minha cama fria
Sinto um calor que me conforta
Me acalenta
Enquanto uma luz amiga me envolve
E me conduz.

Nesta viagem misteriosa
Sigo sem medos
E sem adeus.
Tenho apenas uma dúvida:
Será que agora encontrarei você,
amor dos sonhos meus?!

(Elís Cândido/maio de 2011)

Filosofia de Merceeiro

imagem do Google
Ao fim do dia,
antes de fechar a loja,
o merceeiro debruça-se
sobre os caixotes de fruta
colhendo a fruta tocada,
separando-a da fruta boa,
para que esta
não seja contaminada
pela sua baba peçonhenta.

Ao contrário de Deus
que, nos caixotes do mundo,
teima
em misturar as almas tocadas
com as almas purificadas
para que estas se redimam
de suas impurezas
e possam de novo ser penduradas
na árvore da vida,
o merceeiro sabe
que o mesmo nunca acontecerá
com a fruta
que, uma vez contaminada,
jamais voltará a ser sã.

Por essa razão, todas as manhãs,
quando volta a estender
os caixotes de fruta no passeio,
apenas a fruta boa
é exposta
ao olhar cioso da clientela,
que nada quer saber
da improvável redenção
da fruta estragada.

(retirado do blog Seguindo o Escoar do Tempo)