Era uma vez um anjo. Um belo anjo chamado Mihael. Ele era um anjo de Terceira Hierarquia, aqueles que são designados pelo Criador para ficar bem próximos à humanidade. À cada anjo, é dada a responsabilidade de zelar e orientar um pupilo, um protegido. Para aqueles que duvidam da existência dos anjos, basta ler o Livro Êxodo, da Bíblia Sagrada: "Eis que envio um Anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. Respeita a sua presença e observa a sua voz, e não lhe sejas rebelde, porque não perdoará a vossa transgressão, pois nele está o Meu Nome. Mas se escutares fielmente a sua voz e fizeres o que te disser, então serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários". (Ex 23,20-22)
Então, era uma vez um anjo, chamado Mihael. Teve como incumbência divina, acompanhar os passos de Luiza, desde o seu primeiro sopro de vida. E assim o fez. Esteve ao seu lado todos os dias. A cada passo ele a orientava. A cada tombo ele a reerguia. A cada noite ele velava o seu sono. E foram assim todos os dias da vida de Luiza. Sem que ela sequer se apercebesse.
A vida poderia ter seguido seu rumo tranquila, não fosse um acontecimento inesperado: Mihael se encantou por Luiza.
Aquela jovem doce e tão desprotegida. Ao mesmo tempo tão bela e voluptuosa tornou-se dor e martírio para ele.
Ele a seguia por todos os lugares. Ouvia cada palavra. Adivinhava cada pensamento. Conhecia cada sonho e cada desejo, mesmo os mais escondidos, encravados no fundo da alma de Luiza...
E ele, a cada dia, mais queria ser seu dono. Ser seu senhor e soberano.
Luiza já não conseguia ter amigos. Não saia. Queria apenas ficar só. Só, na companhia de Mihael. Ela não sabia, mas quando ficava sozinha ele podia se aproximar mais dela. Às vezes, ele achava que ela podia ouví-lo. Perceber sua presença...
Muitas foram as vezes que ela sentia um arrepio estranho percorrendo seu corpo, suas veias, desencontrando seus pensamentos...
Ele cada vez a amava mais. Ela cada vez amava mais a solidão...
Um dia, um querubim chamou Mihael aos céus, preocupado com seu desempenho.
Ele foi advertido. Orientado. Ameaçado. Por fim, foi afastado.
Mihael já não podia mais aproximar-se de Luiza. Em seu lugar agora, outro anjo zelava por ela.
Luiza, repentinamente sentiu-se renovada de energias e de felicidade! Queria sair, passear, ver seus amigos. Sentia-se bela como nunca. Emanava vitalidade!
E Mihael, transformava-se a cada dia numa figura tristonha. Sua luz se consumia pouco a pouco. Suas asas perdiam a força e voar era um enorme sacrifício.
Deus, misericordioso e sábio, tentou dar a Mihael uma nova ocupação. Chamou seu querubim e ordenou que a ele fosse oferecida um segunda chance. Mas Mihael não conseguia preencher a sua alma anjelical com o amor necessário para desempenhar o seu papel.
Então ele abriu as portas do céu e fugiu.
Naquele momento, Mihael queria apenas uma coisa: rever Luiza!
Desacatando as ordens supremas, ele se viu num vôo rasante em direção ao local que ele melhor conhecia no mundo. O coração de Luiza.
Mas, pobre anjo! Ao chegar lá, encontrou seu pequeno coração já repleto de amores. Batendo descompassado pelo ritmo louco da paixão! Sim. Luiza amava...
Tormento e dores tomaram conta de Mihael, numa fúria que ele até então desconhecia.
Ventos fortes entraram pelas janelas da casa de Luiza, repentinamente. Os cachorros latiam agitados. O céu vestiu-se de negro.
Deus sabia. Ele sempre sabe.
Mihael era agora um anjo banido. Um anjo caído. Um anjo que já não tinha para onde ir.
Ele traiu a confiança divina.
Traiu a confiança de Luiza.
Traiu a si mesmo quando se deixou apaixonar.
Pobre anjo caído!
Mihael agora chora. E a natureza chora gotas de uma chuva estranha, sem razão de ser. Ela chora com ele. Chora por ele.
Vagando pelo mundo, sem ser notado por ninguém, pois era anjo, Mihael sentia-se miserável. Ninguém o via. Ninguém o ouvia. Niguém sabia da sua existência ou da sua dor. Ninguém.
Vagou assim errante por um tempo que nós, humanos, não saberíamos contar. O tempo de Deus e dos anjos não é como o nosso.
E ele vagou. E vagou.
Viu o mundo mudando ao seu redor. Pessoas nascendo e pessoas morrendo.
Afeiçoou-se a um cão. Para quem não sabe, os cães podem ver e se comunicar com os anjos...
Seu sopro de felicidade por pouco tempo durou, já que os anos de vida do cão, comparados a toda a eternidade de Mihael, eram poucos.
Um dia, então, ele decidiu ir ao inferno.
Talvez lá fosse sua morada ideal. Sim. Quem poderia saber?
Decidido como só um anjo sabe ser, caminhou direto para as profundezas da terra. Passou por rios de sangue. Pelo vale da morte e das almas perdidas. Pela zona dos gritos e dos medos. Pelos desertos silenciosos daqueles que se perderam para sempre... E chegou ao inferno.
O Diabo, que não é de negar inquilinos, logo sentiu-se animado por tão honrada hospedagem. E tratou de aceitar o novo residente.
Mihael andava e sentia seus pés doerem. No inferno não é possível voar. O ar repele as pessoas e o peso das suas culpas as fazem pesadas demais. Então Mihael tinha que andar.
E ele andava. Ficar parado era pior. Os gritos e gemidos. Os risos e algazarras. Os sons do inferno pareciam trombetas malditas que atormentavam sua pobre alma.
Muitos foram seus dias naquele lugar. Uma eternidade inteira...
Um dia, Mihael encontrou uma alma perdida que ainda clamava por Deus.
- Deus? Você está no inferno e ainda chama por Deus? - disse Mihael.
- Sim. Cometi muitos erros. Matei, roubei, trai, tirei proveito dos mais fracos, torturei... Mas tenho fé que ainda possa haver salvação para minha alma. Rezo para Deus todos as noites (pois no inferno não há dias, apenas noites) e sei que Ele virá em minha direção!
Aquelas palavras tocaram na alma confusa de Mihael. Ele passou a falar com as outras almas do inferno e descobriu que muitas ainda queriam a salvação. Ainda acreditavam em Deus.
E ele começou a falar das maravilhas que Deus proporcionava àqueles que desfrutavam do seu amor. Falou do seu amor por Deus. Lembrou do seu amor por Luiza. Lembrou-se do quanto a amava e compreendeu o amor de Deus por seus filhos. Um amor enorme e incondicional! Lembrou da sua vida angelical e de tudo o que havia de belo depois dos Portões do Paraíso.
E as almas perdidas cada vez mais vinham ouvir o anjo que falava de Deus.
E o Diabo virou bicho!
Ele chamou os seus asseclas e ordenou que eles expulsassem Mihael. Que eles o levassem o mais longe possível do inferno. Que eles o levassem aos Portões Sagrados dos Céus!
E assim foi feito.
Pobre Mihael. Anjo caído.
Banido do céu.
Inexistente na Terra.
Expulso do inferno.
Os demônios o deixaram lá, jogado nas Portas Sagradas do Paraíso.
São Pedro, ao vê-lo, veio correndo em seu socorro, oferecendo-lhe conforto e carinho.
E o céu se fez festa! As trombetas divinas tocaram por sete dias e sete noites.
Um anjo perdido havia voltado!
Mas haveria de chegar a hora de Mihael se encontrar com Deus!
E esta hora chegou.
Na presença Dele, nada havia que se falar. Afinal, Deus é onipotente e onipresente. Ele tudo tudo sabe e tudo vê.
E Ele viu as andanças de seus filho.
- Eu estava ao teu lado, Mihael, durante todos os teus dias de dor e sofrimento! - disse-lhe Deus.
- Eu era o cão que te acalentou a solidão e que te fez companhia na Terra. Tentei fazer você se lembrar do Meu amor e fidelidade, mas você não Me enxergou.
- Eu estava ao teu lado no inferno! Era Eu aquela alma perdida que clamava por redenção. Eu tentei te fazer recordar que o Teu Deus é misericordioso e que sabe perdoar aos que se arrependem verdadeiramente dos seus erros, Mesmo que estejam pelas porta do inferno.
- Mas você não se lembrou! A unica coisa que fez você se lembrar de Mim, foi o seu amor por Luiza. Sua perdição e sua redenção ! Por ela você veio até a Mim. Por ela você compreendeu que aquele que ama como Eu os amo, sacrifica a sua felicidade em nome deste amor.
E Mihael compreendeu este amor imenso. E ficou grato.
Ele aceitou sua condição angelical e a responsabilidade de retornar à Terra para cuidar de uma nova alma, que acabara de chegar ao mundo.
E Mihael veio ser o anjo guardião de Dimas, o filho de Luiza.
Porque assim Deus ordenou. Porque Ele assim quis. Por amor e devoção. Todos os dias daquela pequena vida.
Sempre.
(Elís Cândido/maio de 2011)
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