Duas existências




Numa casa em que faltava
A luz o ar e pão
Entrara ela na vida
Tendo ao seu lado um caixão;

Pois no dia em que nascera
Morrera seu pai também!
Vira assim a luz do mundo
Sozinha com sua mãe!

Num rico, claro aposento
Entre veludos e rendas
Onde as mais pequenas fendas
Para não entrar o frio,
Embora fosse no estio
Se tinham calafetado,
Onde tudo era alegria,
Onde tudo era cuidado
Tinha no mundo ele entrado
Em um esplendido dia!

Crescera só rodeada
Pela dor, pela pobreza,
Pela fome, pelo frio,
Pela miséria e tristeza

Crescera ele ao contrário
Entre risos d'alegria
Entre abundância, opulência
E tendo tudo o que queria.

A mãe dele mui doente
Não podia trabalhar:
A linda e pobre Maria
Tinha pois que a sustentar
Para isso noute e dia
Estava sempre a costurar!

Ele não, não trabalhava,
Alegre vida levava,
De cousa alguma cuidava,
Excepto dos seus prazeres.
Gastava dinheiro a rodos
Mas era célebre entre todos
Pelos seus trens e mulheres!

Maria como uma deusa
Era bela era formosa.
Olhos lindos, graciosa
A boca, e as mãos de fada.
Alta não muito, elegante.
A tez do seu semblante
Mimosa mas descorada.
Tinha mui negro o cabelo
E de tal maneira belo
Que qualquer pessoa ao vê-lo
Ficava extasiada!

Também ele era formoso,
O rosto branco e rosado,
O seu lábio por um buço
Louro e fino assombreado.
Era enfim João um moço
Que devia ser amado.

Por grande fatalidade
Encontrara ele um dia
A linda e casta Maria
Numa rua da cidade.
De ver tão grande beleza
Na miséria, na pobreza
Ficara muito espantado.

De Maria o coração
Palpitara ao ver João!...

.........................................

Poe ela ele foi amado!...
Com grande amor inocente.
Amou-a ele também
Porém... Criminosamente!

........................................

Passou-se o tempo e a pomba
Caiu nas garras do abutre!

.......................................

É bem certo que mui zomba
A previdência no mundo
Com um cinismo profundo
Pois em quanto que Maria
Donzela tão desgraçada
Vendo-se ludibriada
Viver mais tempo não queria
E co'a a vida terminava;
Ele, o infante João
Continuava a viver
Rico, alegre e feliz
Numa vida de prazer!...

(Mário de Sá-Carneiro)

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